Conhecemos muito da obra de César Pelli - autor das Torres Petronas de Kuala Lumpur - mas sabemos muito pouco da carreira produtiva e admirável de seu irmão, também arquiteto, Víctor Saúl. Nascido em Tucumán, Argentina, dedicou sua carreira ao desenvolvimento de habitação social, associando com êxito docência, pesquisa, ação participativa e assistência técnica a diferentes comunidades.
Conheça sua interessante visão do ensino de arquitetura no mundo de hoje e da importância do processo e da participação do usuário na redução da pobreza, através de uma série de citações retiradas de uma entrevista com o arquiteto realizada em 2005 por Elena Adobe para a página Arquisocial.org.
Víctor Pelli tem uma visão bastante crítica do ensino de nossa profissão na atualidade. Seu modo de ver esta situação se baseia principalmente no contexto argentino - onde realiza seu trabalho - mas corresponde em grande parte com o que acontece hoje no restante da América Latina.
"A arquitetura de hoje entrega produtos e serviços somente àquele que pode pagar"
Para começar, o arquiteto observa que o problema começa na falta de conexão entre as escolas e a sociedade, assegurando que existem algumas universidades com um "certo ar aristocrático" do ofício, onde a obra de arquitetura é entregue à sociedade como um bem precioso que não interage com a comunidade a que se destina.
É por isso que sugere que deveria existir um intercâmbio mútuo entre as escolas e a sociedade: "a sociedade como conjunto e sua parte mais crítica fazendo a universidade conhecer a realidade, e a universidade transmitindo ao restante da sociedade o que por sua missão própria tem acumulado e processado."
Para ele, a grande maioria dos estudantes de hoje estão sendo formados dentro das regras do mercado, onde, segundo suas palavras:
'entrega-se produtos e serviços àquele que pode pagar, não àqueles que não podem pagar. Quem pode pagar, quem tem muitos recursos para isso, realmente está de acordo com a moda, na melhor e mais atual das correntes. Mas todo esse movimento - que tem suas justificativas - faz com que sejam esquecidos, adiados ou inacessíveis os problemas dos outros 50%'.
A solução se encontra então em tornar efetiva a "responsabilidade da escola em redirecionar, proporcionar (aos estudantes) outras lentes para ver a outra parte da realidade".
Pelli não é contra a construção de grandes torres ou edifícios de luxo, mas se preocupa que este tipo de arquitetura seja a maior parte do ensino. Segundo ele, isso deveria ser uma das muitas especializações possíveis dentro da carreira e não a principal, deixando mais espaço para uma formação mais geral em relação a totalidade do espectro social real.
Isso se choca com as ilusões de um estudante de arquitetura? Víctor Saúl crê que sim:
'(o estudante) não gosta de ser parte de uma equipe onde as melhores coisas não serão grandes obras de arquitetura. Mas acredito que seja parte do projeto de formação: ir construindo outro critério de missão profissional, outra noção de êxito'.
“Eu não tenho obras”: A importância do usuário na redução da pobreza
Pelli põe o usuário em um papel fundamental dentro do processo projetual de uma obra e a vê simplesmente como uma solução a um problema determinado. É por isso que quando perguntam sobre suas obras, ele responde: "Eu não tenho obras. Mas não é um jogo ou uma postura, realmente se alguém coloca seu interesse e seu trabalho em demonstrar que as coisas devem ser produzidas por um grupo onde o habitante, o usuário, o receptor é um personagem importante, bem, não são obras minhas!"
Como então é possível reduzir a pobreza através da arquitetura? Sua resposta está focada em mudar a ideia de arquitetura como uma "produção de objetos" e em focarmos, como arquitetos, em acabar com a exclusão, não com a carência.
'Se alguém vai além e se aprofunda na natureza da pobreza, passa a propor que não se pense somente no objeto como elemento ativo na redução da situação da pobreza, mas também no processo como um elemento ativo.(...) O processo, com critérios de participação e de respeito - não submissão - do ponto de vista do receptor dos outros atores, começa a funcionar como um redutor da parte da pobreza que não é carência, mas exclusão. Esse homem, sobretudo o beneficiário, entra na prática de tomar conta do problema, de tomar decisões, de ser responsável, de discutir...em igualdade de condições com pessoas que no esquema convencional da sociedade estão acima dele e não admitem outro tipo de solução que não sejam as suas próprias'.
'Não gosto da ideia de ajudar os pobres, creio que isso seja caridade. Realmente gosto da ideia de construir uma sociedade onde não existam pobres, que é uma coisa diferente'.
*Víctor Saúl Pelli
Arquiteto formado pela Universidade Nacional de Buenos Aires, UBA. Pesquisador Principal CONICET (aposentado 2000). Criador e Diretor, até 2011, do IIDVi. Criador e Professor, até 2006, de “Gestão e desenvolvimento de Habitação Popular", carreira de Arquitetura, FAU, UNNE. Criador e Presidente, até 2000 da Organização Não Governamental ICoHa, Instituto para a Comunidade e o Habitat, unidade de extensão e experimentação de IIDVi. Diretor, desde 2012, da Maestría en Gestión y Desarrollo de la Vivienda Social, de IIDVi, FAU, UNNE. Consultor, até 1994, de HABYTED, Subprograma de Habitação de Interesse Social do Programa Iberoamericano CYTED e ex Chefe de Projeto no Subprograma. Diretor de projetos habitacionais experimentais de IIDVi, desde 1970 até 1998. Professor em mestrados universitários em diversas universidades de Argentina e Rio Grande Do Sul, Brasil.- Cursos y conferências em universidades e centros de estudo de Argentina, América Latina y Europa. Livros, artigos, e ensaios em Argentina e estrangeiro. Integrante, até 1999, da disciplina Arquitetura, de las comit~es de consulta de CONICET. Prêmio "Ing. Luis V. Migone" (urbanismo e habitação) da Academia Nacional de Engenharia (Argentina). Prática profissional convencional antes da atividade de pesquisa-desenvolvimento.
* Perfil publicado em Instituto de Investigación y Desarrollo en Vivienda.
Fotografias: Via Flickr, Usuário Canoa ONG / UTPMP Argentina